“O que ela sussurra”, livro de Noemi Jaffe, publicado em 2020, pela Companhia das Letras, é um relato da companheira do poeta Ossip Maldesltam, Nadjeda, que passa os dias rememorando e sussurrando os poemas de Ossip para que eles sobrevivam à destruição. O cenário é a repressora União Soviética de Stálin, quando singularidades foram caladas, muitas vidas foram ceifadas, passados cheios de histórias e projetos futuros de intelectuais, artistas, camponeses foram enterrados e interrompidos. Não apenas os escritos de Ossip entram no inventário de vigílias e memórias da narradora. “A Rússia inteira sussurra. Mulheres sussurram poemas e cartas; velhos sussurram provérbios antigos e canções; trabalhadores do campo entoam rezas secretas; ex-espiões arrependidos murmuram pedidos de perdão [...] segredos são passados subterraneamente de bar em bar, casa em casa.” O apelo do poeta que ecoa na escrita sussurro de Nadjeda é que fiquemos em vigília, que não percamos nossa época.
Os trechos recolhidos de livros dos autores Telma Scherer, Fernando Boppré, Beatriz Tramontin, Bento Nascimento e Franklin Cascaes trazem ao "Página Sonora" do mês de julho ecos de memórias, dores revisitadas, contemplações de instantes quase perdidos e mitos longínquos. Sobretudo, há memória e poesia na temporada disponível no Spotify, Google Podcasts e Apple Podcasts. Abaixo, a técnica de Cultura do Sesc Estreito (Florianópolis) e Palhoça, Luciana Tiscoski, entrevista os autores participantes desta temporada.
No mês que marca o dia do escritor, comemorado em 25 de julho, lançamos uma pergunta aos participantes desta edição do "Página Sonora".
"Cor" vem do latim "cor", que se traduz em italiano "cuore" e em francês "coeur". Já a expressão “saber de cor” vem do francês “savoir par coeur”, que significa ‘saber por intermédio do coração’.
Qual seria o poema, texto, livro que você gostaria de saber de cor? E qual o lugar da memória na sua escrita?
Telma Scherer (Foto: J.M. Terenzi)
“Fiquei pensando se no coração caberia apenas um livro para saber de cor. Impossível não pensar em Drummond e as medidas do mundo e do coração, e em como somos grandes e pequenos. Acho que há espaço para vários livros, sim, nessa memória errante que é o corpo.
A dança fica fixada em um automatismo que pode, a qualquer momento, ser reatualizado ao soar de boa música. Então, nesse coração que se distende e comprime, há, para mim, habitação principalmente para a poesia brasileira dos séculos XX e XXI, e para certos livros muito mulheris, que me formaram.
Um livro que eu gostaria de saber de cor é “Mrs. Dalloway”, de Virginia Woolf. Desde que o conheci, sempre quis que ele se misturasse ao meu corpo, e não é à toa que é um dos romances que figuram no meu “As avessas”, tecidos nas suas entrelinhas.
Outro livro que eu gostaria de saber de cor é "Ariel", de Sylvia Plath. Acho que, de alguma maneira, já o tenho de coração. Reli tantas vezes os poemas que considero mais emblemáticos que a memória vai puxando o verso seguinte, na bela tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maria Cristina Lenz de Macedo.
Quanto ao papel da memória na minha escrita, penso que é dela, das memórias conscientes e lembradas e das memórias abafadas e dormentes, que tudo surge. As memórias doloridas de um acontecimento vivenciado em 2010 são o substrato básico e primordial do poema "Não alimente a escritora". E como são memórias de violência, tudo o que se refere a esse acontecimento retorna inteiramente a cada vez que leio o poema. O fato de publicar esse livro tem me ajudado a lidar com as memórias que cortam por dentro, redirecioná-las para um espaço habitável, no coração. O poema é também denúncia dos abusos policiais vivenciados por uma parcela enorme da população brasileira, é testemunho e pisca-alerta.
Por outro lado, muitas memórias dormentes, inconscientes, vazaram por livros como "Squirt" e "O sono de Cronos". É como se cada poema desses livros fosse a memória de um sonho que, nas palavras, desperta, em forma de música. São memórias sensoriais e embrulhadas em imagens difusas, tão difusas quanto necessário para que elas possam ser expressas. No caso de "O sono de Cronos", penso que há a investigação e, de certa forma, o registro de pensamentos que ocorrem de modo muito veloz enquanto estou pintando. Desse modo, é como se os poemas colocassem em câmera lenta as memórias de sensações do ato de pintar.
No caso do romance "As avessas", a memória é central também como tema. Como esse livro se relaciona com tempos distantes (uma Clarissa do século XVIII, duas Clarissas do século XX, uma Clara dos anos 90, uma Luísa da década passada), tudo nele é orquestração de passados. As duas personagens que são alteregos meus foram construídas a partir de memórias. Transportei-me para o momento em que descobria o mundo adulto, fui ao nervo das memórias para retirar de lá a seiva da história de Clara.”
Ouça no episódio “Não alimente a escritora”, um trecho do poema de Telma Scherer.
Fernando Boppré (Foto: Leonardo Santos)
“Eu gostaria de saber de cor um bom livro sobre técnicas agroflorestais. Sabê-lo seria ótimo para quando eu fosse mexer na terra. O livro me faria aprender como lidar com cada espécie, os períodos e formas de podas, a compreensão dos ciclos de cada cultura, enfim, fazer com que a terra seja fértil sem o uso de agrotóxicos.
Se fosse para escolher um poema, eu ficaria em dúvida entre o “Funeral Blues”, de W. H. Auden ou “A Balada dos Loucos”, de Cruz e Sousa.
Quando escrevo, a memória é um manancial lamacento para mim. Muitas vezes surgem lembranças que eu não gostaria de mexer, mas que eu preciso revirar para tentar entender o que passou, dar um sentido, uma forma, fazer com que aquele entulho de histórias que vivi não fique atravessado no meu caminho. E também tem a memória de outros e outras, de vidas que não vivi mas que aprendi a cotejar com outros livros, que se tornam espécies de vidas-que-eu-gostaria-de-ter-vivido e que se repetem ao longo do que escrevo. E quando eu me lembro que eu estudei História na universidade, que trabalhei em museus por um longo período, eu percebo o quanto a memória é constituinte de tudo o que faço. Embora sempre prefira escrever a partir da observação da natureza (incluindo aí seres humanos), como o velho poeta japonês Saigyo, que escrevia poemas para a lua.”
Ouça no episódio “Poço Certo”, três poemas de Fernando Boppré.
Beatriz Tramontin
“O poema "Anotação", de Wislawa Szymborska (tradução de Regina Przybycien) e o livro “Folhas de relva”, Walt Withman. A memória está muito conectada com a minha escrita quando eu registro a experiência no papel. Deu me perceber afetada por algo (seja esse algo: plantas, animais, lugares, pessoas, qualquer coisa) e precisar registrar isso na escrita (ou na imagem) pra que um dia essa memória se transforme em um poema, ou em um verso da poesia (e também no meu caso, em alguma cena do filme que estou roteirizando).
Essas memórias também podem funcionar como um disparador para a criação da poesia ou do filme.”
Ouça no episódio “Territórios Vazantes”, três poemas de Beatriz Tramontin.
Bento Nascimento
O poeta contemporâneo nascido em Itajaí Bento Nascimento (1962 – 1993) será representado nesta entrevista por Diego Elias, assistente de Biblioteca do Sesc Balneário Camboriú, que fez a seleção e leitura de alguns dos poemas do livro “Celacanto”. Ele nos relata aqui sua experiência de leitura da poesia de Bento Nascimento e sua percepção de como a memória ecoa na escrita do poeta.
“Escritos numa linguagem clara e, por que não?, cool durante seus vinte e poucos anos — e este “Celacanto” lançado em 89 nos seus vinte e sete —, os poemas de Bento captam toda a insurgência e frescor da juventude, não só a de sua própria época, mas com muito a dizer a novos e jovens leitores, pois as características primordiais são sempre as mesmas: seus desejos, seu amor não correspondido, a inquietação da vida, a melancolia, a preguiça, o humor desabusado e ligeiramente ingênuo. Certamente a identificação é imediata, seja pelo instante ou pela saudade.”
Ouça no episódio “Celacanto”, seis poemas de Bento Nascimento.
Franklin Cascaes
Conhecido como “Seo Frankolino” pelos pescadores ilhéus, Franklin Cascaes (1908 – 1983) é um dos maiores estudiosos da memória cultural das comunidades litorâneas e pesqueiras da Ilha de Santa Catarina. O cenário de histórias, fantasias e mitologia, é também um cenário de memórias ancestrais. O Diretor de Programação Social do Departamento Regional do Sesc Eduardo Makowiecki Junior é quem faz a leitura do trecho de um conto do livro “O Fantástico na Ilha de Santa Catarina” e nos deixa aqui um pouco de sua memória afetiva no contato com o texto de Franklin Cascaes.
Todos nós vivemos em nossas infâncias momentos inesquecíveis. Muitas vezes uma comida, uma música, uma cor, uma história nos remetem a momentos que vivemos e que foram incríveis. Legal poder ler este texto de Franklin Cascaes e ligá-lo a momentos afetivos que deixaram marcas. Legal lembrar da ida com meu pai a praia dos Ingleses para comprar tainha direto dos pescadores, ajudar a puxar a rede, essas tainhas eram as melhores. Legal lembrar das histórias da minha vó Dona Nicolina, mordendo a língua enquanto contava seus causos. Que boas emoções essa leitura me trouxe. Que ótimo texto e que ótimas sensações Franklin Cascaes me proporcionou.
Ouça no episódio “O Fantástico na Ilha de Santa Catarina”, um trecho do conto “A bruxa metamorfoseou o sapato do Sabiano”, de Franklin Cascaes.
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Saiba Mais:
Como surgiu o "Página Sonora"
Texto de Luciana Tiscoski, técnica de Cultura do Sesc Estreito (Florianópolis) e Palhoça.
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