O "Página Sonora", podcast da literatura feita em Santa Catarina, através da Rede de Bibliotecas do Sesc-SC, é um projeto dedicado inteiramente a autores que aqui tecem ou teceram suas histórias, seus relatos, pensamentos, pesquisas, diálogos e trocas, nos mais variados gêneros, estilos e linguagens.
A primeira edição do ano, lançada no dia 14/01, conta com uma seleção de leituras de nomes representativos do percurso literário catarinense. São eles Lindolf Bell, Dennis Radünz, Ana Elizabeth Simões, Carlos Henrique Schroeder e Bruna Barreto. Os episódios já estão disponíveis no Anchor, Spotify e demais plataformas.
No dia 29 de janeiro, mantendo nossa programação quinzenal, novos episódios do “Página Sonora” com Cristiano Moreira, Suzana Mafra, Osiris Duarte, Juliana Ben e Manoel Carlos Karam. Imperdível!
Um acervo de fragmentos que cresce a cada quinze dias
Os textos se comunicam e as singularidades formam um extenso e rizomático tecido de escritas, vozes e expressões. O tempo para a escuta é curto, em obediência ao ritmo do cotidiano. Sabe-se que é impossível que um fragmento contenha o livro, que o livro escolhido dê conta da criação já publicada ou ainda por vir, dos escritores selecionados, que o meio impessoal da gravação dê vazão à descoberta ou redescoberta do leitor que empresta sua voz ao texto.
No entanto, ainda que obedecendo ao ritmo midiático, paradoxalmente, há uma espécie de desobediência que permanece viva e sonora, na insistência pela comunicação da literatura, ou das literaturas. Os leitores selecionam e percebem, aos poucos, no acervo de fragmentos que cresce a cada quinze dias, as afecções, sensações e percepções que surgem das leituras, expressões e sonoridades; dos ritmos, gêneros e estilos misturados. E transgridem também com seu convite aos ouvintes para uma breve interrupção no tempo, para se permitirem o deleite de ouvir à profusão de textos nas vozes do “Página Sonora”, com sua pequena parcela de estímulo à leitura e à contemporização das literaturas criadas a partir de Santa Catarina.
Afinal, reverberando pensamentos de mestres das teorias literárias que pesquisam a literatura do presente, o que define a temporalidade de uma cultura é sua leitura com outras culturas, é sua composição, e não fórmulas independentes, separadas e racionais. São leituras que tateiam livros, percorrem antigas referências, trocam ideias e impressões com outros leitores. Dá-se então a gravação de sotaques e entonações díspares.
A escolha de cada série com cinco escritores acontece quase que aleatoriamente, apesar das idas e vindas, das muitas ponderações e ajustes, dos critérios inarredáveis de diversidade e representatividade, o que prevalece é a lei do desejo. Finaliza-se com o cuidadoso tratamento de revisão e edição. Publica-se o fragmento com a trilha criada por instrutores e alunos dos cursos de música do Sesc.
O resultado é o retorno dos ouvintes e dos próprios escritores contemplados, ou daqueles que ainda serão lidos, como o poeta Cristiano Moreira, que estará presente na próxima série do “Página Sonora”, disponível a partir de 29 de janeiro, e que gentilmente divulgou o projeto no site Biblioteca Rural.
“Literatura lida em voz alta. Esta parece ser a onda sonora que aproxima o leitor das margens dos textos. Muitas vezes o leitor se assemelha ao náufrago à deriva enquanto o livro figura como praia desconhecida, distante. Quando o leitor chega até a margem aciona o dispositivo narrativo (Crusoé, Gulliver, Mário Peixoto et caterva). O solo sob os pés, ou o solilóquio do narrador ou, então, o solo fértil leitor ganham o volume da onda e se propagam até nós”. (www.bibliotecarural.com.br)
Primeira série de 2021
Lindolf Bell
A primeira série de 2021, já publicada, apresenta a leitura de dois poemas do poeta do movimento Catequese Poética, catarinense de Timbó, Lindolf Bell (1938 – 1998).
Os poemas “O Ribeirão da Infância” e “Poema para o Índio Xokleng” estão no livro “O Código das Águas”, publicado em 1984. Diga-se, de passagem, que o movimento por ele criado em 1964, o Catequese Poética, tinha por desígnio justamente levar a poesia para o grande público, em leituras nos lugares mais inusitados e populares, nas ruas, estádios de futebol, teatros, feiras, escolas e eventos culturais.
E Lindolf Bell era um declamador de excelência. Além de escritor, tendo publicado, entre outros, os livros de poesia “Os póstumos e as profecias” (1962), “As annamárias” (1971), “As vivências elementares” (1980), “Réquiem” (1994) e “Curta primavera” (1966), narrativa lírica, foi também grande incentivador e crítico de artes visuais. Com a esposa Elke Hering, artista plástica, e os amigos Péricles Prade e Arminda Prade, criou a Galeria Açu-Açu, primeira do Estado de Santa Catarina. Bell também foi professor, conselheiro estadual da cultura do Estado de Santa Catarina e marchand.
Em 2019, foi lançado pela Editora Humana o livro “Lindolf Bell: crítica de arte em Santa Catarina”, promovido pela Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Chapecó, com organização da artista, professora e pesquisadora Daiana Schvartz. A publicação reúne 358 textos de Lindolf Bell sobre artes visuais escritos na coluna do Jornal de Santa Catarina, de Blumenau, entre os anos de 1972 a 1995.
Rafaela Bell, filha de Lindolf Bell e de Elke Hering, conta passagens de sua infância e adolescência rodeada do universo das palavras, da escultura e da pintura, o que acabou herdando em sua trajetória de produtora cultural, mantenedora fiel do legado dos pais e também artista plástica. Com uma pesquisa desenvolvida sobre novas formas de projeção da palavra, Rafaela trabalha a sensibilidade do olhar nas “novas formas de ver e ouvir as palavras, de saber que a palavra é uma frequência, que a palavra liberta e a palavra aprisiona”, declara.
Ela acrescenta ainda que em palestras sobre sua pesquisa, fala sobre astrofísica e neurociência, sem abrir mão da poética. E para completar suas palavras, cita versos de seu pai do Poema para um alienado: “Nada se converte fora de si [...] No entanto, podemos ser próximos / sem sermos anexos [...]”.
Dennis Radünz
Na sequência dos nomes, o escritor e editor blumenauense Dennis Radünz, que foi inclusive o curador da Mostra Iconográfica 30 Anos da Catequese Poética de Lindolf Bell (1994), com exposições em Blumenau, Joinville, Florianópolis, São Paulo (Biblioteca Mário de Andrade) e Rio de Janeiro (Biblioteca Nacional), está no “Página Sonora” no episódio “Cidades Marinhas: Solidões Moradas”, com a leitura da crônica “Arte de ser feliz”.
O livro traz crônicas memoráveis e instigantes que revelam outros olhares e saberes da ilha de Santa Catarina, além de um tratamento gráfico impecável.
A arte de Aline Dias ilustra a publicação com a performance “Homem de açúcar”, constituída por uma escultura de um boneco feito de açúcar que se desmancha e se transforma no decorrer do livro.
Com a palavra, Dennis Radünz:
“Oceanos mínimos no interior de Santa Catarina, a volta de João da Cruz e Sousa à Ilha ou a visita ao Mercado Público levando, apenas na memória, o meu pai falecido foram as narrativas de algumas das 220 crônicas que publiquei, entre 2004 e 2008, na coluna semanal do Diário Catarinense. Chamei-as de ‘jornalirismo’, porque o factual estava radicalmente atravessado de ficção, e publiquei 31 delas em ‘Cidades marinhas: solidões moradas’ (Editora Lábias, 2009). Na crônica ‘A arte de ser feliz’ – publicada no DC em 3 de outubro de 2005 –, a minha leitura do livro ‘A arte de ser feliz’ do filósofo Arthur Schopenhauer (Martins Fontes, 2005), no que ele chamou de Eudemonologia, encontrou a crônica ‘A arte de ser feliz’ (1962), de Cecília Meireles, e, como efeito da transficcionalidade, recriei a cena de Cecília a partir da minha janela no apartamento 404 do bloco E do condomínio Baía do Sol, Agronômica, de onde eu avistava as ilhas dos Ratones e, além, o Cosmo. ‘Dentro de casa, diante do mundo’, dizia. Lida agora, parece um direito de resposta à pandemia: uma nova arte de estar consigo plenamente.” Esta crônica cheia de histórias e demais informações sobre a trajetória literária de Radünz podem ser conferidas no “Página Sonora”.
Carlos Henrique Schroeder
Carlos Henrique Schroeder está presente na série com a leitura de um trecho do romance “História da chuva”, de 2015. O escritor catarinense embaralha vida e arte, ficção e realidade, trazendo para a cena o escritor Carlos, seu alter ego, e dois artistas de teatro de formas animadas, Arthur e Lauro. A ambiência, desde a primeira página, é uma cidade inundada pela chuva no interior de Santa Catarina, onde vivem também seus fantasmas.
O autor comenta que “História da chuva” é seu livro mais pessoal, “ali estão, misturados aos cacos ficcionais, a minha privacidade e até de minha companheira. O pano de fundo são as enchentes catarinenses, e tem a investigação sobre o teatro de formas animadas, mas o tema verdadeiro do livro é a marca (real e simbólica) que a arte deixa na vida das pessoas, sobretudo na dos artistas.” Declara ainda que hoje, cinco anos depois da publicação, mudaria toda a forma do livro, os planos e camadas, e optaria por uma narrativa mais linear e sintética. “Acho que ampliaria a potência. Mas a gente só percebe essas coisas com o tempo, com a perspectiva”, pondera Schroeder.
Em 2020, o autor de “As fantasias eletivas”, lançou “Aranhas”, pela Record, um livro de contos nada convencional. Cada conto é inspirado por uma espécie de aranha, inspiração decorrente de sua obsessão pelos aracnídeos e da lembrança que o persegue de dois perturbadores desenhos a carvão do artista simbolista francês Olidon Redon (1840-1916), “Aranha rindo” e “Aranha chorando”.
Sobre o livro, Schroeder fala do prazer que lhe proporcionou sua escrita, em todas as etapas, sobretudo na pesquisa e escritura. “Mas na revisão e edição dos textos eu sofri muito, pois tinha muito material, mais de cem narrativas (entre pequenas e grandes),e precisava escolher não as melhores, mas as que formariam a melhor teia narrativa, a melhor combinação. E isso é dolorido, escolhi apenas 32 e deletei as demais, para não ficar remoendo cada texto”, revela o autor. O “Página Sonora” já prevê para breve um trecho de Aranhas no podcast.
Bruna Barreto
Bruna Barreto é uma poeta do interior de São Paulo, bastante jovem, e que há alguns anos morando em Florianópolis, já ganhou as ruas com sua poesia reivindicatória e potente, em consonância com uma vertente bastante enfática nos slams, saraus e batalhas de rimas que vêm crescendo no país, com certeza arrefecidos na pandemia.
Mas diante das impossibilidades que se apresentam no isolamento social, os caminhos se abrem em outras redes e perspectivas. Os meios digitais não substituem a potência e o calor dos contatos humanos nas ruas, bares e espaços culturais, porém, mantêm vivas as vozes e a comunicação pela arte.
“A poesia me abriu portas, desde minha primeira apresentação em um sarau no Fazendo gênero- Mundo de mulheres na UFSC, muita coisa mudou. Tive a oportunidade de me apresentar em diversos lugares com artistas que admiro, comecei a cantar fora da minha casa, lancei um single e lançarei meu primeiro EP intitulado "Pro teu governo", produzido por Maite Fontalva uma das integrantes da banda Orquidália, que também está produzindo o novo EP da mesma”.
Bruna Barreto esteve presente no Sesc na Flip – Feira Literária Internacional de Paraty, em 2019, ocasião em que o Sesc Santa Catarina foi representado, na literatura, por Dennis Radünz e, na música, por Dandara Manoela. Foi a própria Dandara quem apresentou no palco da Flip a poeta Bruna Barreto, que emocionou o público com o poema Madalena. Neste episódio do “Página Sonora”, os ouvintes têm acesso a um trecho de “Nossa poesia”, coletânea de poemas da autora.
“Tenho grande apreço pela palavra escrita, mas a palavra falada, se declamada com sentimento, força e verdade, chega ao outro como sentimento e reflexão, este é meu objetivo, me apresentar e depois que todos forem embora pensarem sobre o que foi falado, por que quando você atinge alguém com palavras, isso não é esquecido”, reforça Bruna.
Ana Elizabeth Simões
A escritora, jornalista e professora universitária Ana Elizabeth Simões participa com um poema da série “Letras Associadas 4”, coletânea de contos, crônicas e poemas de 25 escritores membros da Associação das Letras de Joinville. Ana Elizabeth começou a escrever aos seis anos por incentivo dos tios, também poetas. Com 19 anos lançou uma publicação com mais quatro jornalistas curitibanos na Casa Romário Martins, em Curitiba. Incentivadas por Paulo Leminski, Alice Ruiz - que foi casada com o poeta paranaense autor de Catatau - e também poeta, haicaista, letrista e tradutora brasileira, e Ana Elizabeth, então com apenas 23 anos, publicaram juntas em revistas literárias brasileiras.
No grupo Zaragata de Poetas, de Joinville, liderado por Dúnia de Freitas, participou de inúmeros projetos artísticos por sete anos consecutivos. Na Associação das Letras, teve seus textos publicados nas miniantologias 1, 2, 3, 4, 5 e 6 e das Antologias Rede das Letras, Janela das Letras. Para a autora, participar de projetos que incentivem a literatura é uma oportunidade única de mostrar seu trabalho e deixá-lo acessível aos leitores.
Enfatiza que as redes digitais abrem uma nova via de comunicação no contexto difícil dos tempos atuais. “O Sesc inova e nos oferece esta oportunidade”, finaliza.
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Texto de Luciana Tiscoski, técnica de Cultura do Sesc Estreito (Florianópolis) e Palhoça, e colaboração de Marilaine Hahn, analista de Cultura do Departamento Regional do Sesc Santa Catarina.
Como surgiu o "Página Sonora"
A iniciativa "Página Sonora" vem sendo construída desde novembro de 2019, quando os assistentes de biblioteca e alguns técnicos de cultura do Sesc Santa Catarina realizaram um encontro com o objetivo de debater e reinventar caminhos para a efetiva formação de leitores críticos e contumazes, com conhecimento e reconhecimento do que é a experiência da leitura. E para que essa transformação de fato aconteça, há longos caminhos a serem percorridos, começando por capacitar a equipe de assistentes de biblioteca para mediação do livro, da leitura e da literatura.
Surgiu então a necessidade de buscar compreender a maior carência e urgência dentro de um universo tão vasto. E dentre as inúmeras sugestões, possibilidades, alusões e argumentações, uma tarefa ficou clara e unânime: ler, reler, conhecer, discutir e então, dar acesso aos leitores ou ainda não leitores, à escrita produzida em Santa Catarina. Os projetos e eventos planejados para 2020 com essa finalidade e tantas outras demandas, desde revigorar a literatura voltada para o público infantil até tornar a biblioteca um espaço cada vez mais de acolhimento, fruição, informação e diversão, foram adiados com a pandemia. Mas aos poucos, com o afeto e a persistência necessários a quem trabalha com cultura em nosso país, os meios foram sendo criados e uma parte das muitas tarefas daquele encontro se concretiza no "Página Sonora".
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