“Ninguém sabe do que um corpo é capaz”. Essa era uma frase de Spinoza constantemente aludida por Gilles Deleuze, que a usava para falar do desejo e da capacidade que um corpo tem de afetar o outro. Para Deleuze, o corpo é definido muito mais por essa potência, a intensidade de suas experiências no atravessamento de outros corpos, do que por seu pertencimento a uma espécie. As escritas que hoje contam as histórias dos nossos tempos são escritas que têm a coragem de se revelar, de tocar em temas nem sempre digeríveis e fáceis, de chamar para o diálogo, perquirir o leitor, a leitora ou qualquer que seja o gênero desses corpos convocados a integrar a literatura. A palavra coragem vem do latim coraticum, e significa a força que vem do coração.
Neste mês, o podcast "Página Sonora" destaca as escritas do presente, que aqui se apresentam em pequenos relatos e nos fragmentos lidos, marcadas por essa coragem de comunicar e afetar.
Daniel Santos, Enzo Potel, Bianca Furtado, Beatriz RGB e Marco Vasques são os autores em destaque na temporada disponível no Spotify, Google Podcasts e Apple Podcasts. Abaixo, a técnica de Cultura do Sesc Estreito (Florianópolis) e Palhoça, Luciana Tiscoski, escreve sobre os autores e episódios, enaltecendo as novas literaturas que se constroem entre quedas, ofensas, cotidianos, brumas e demais ferramentas imaginativas.
O "Página Sonora" é um projeto dedicado inteiramente a autores que tecem ou teceram suas histórias em Santa Catarina, com realização da Rede de Bibliotecas do Sesc-SC.
Daniel Santos
Daniel Santos é escritor e editor da Butecanis, uma editora de livros artesanais sediada em Camboriú. Um trecho do conto “Sobrevida na vila” do livro “Queda não é voo”, lançado em 2015 por sua própria editora, está disponível nesta temporada do "Página Sonora". Daniel revela um pouco de como foi sua relação com o livro. “Foi uma das minhas primeiras tentativas de experiência de um formato de escrita que tem se tornado cada vez mais recorrente nos meus textos.
É uma coletânea de 5 contos (ou, se preferir, 5 micro romances) escritos a partir de cenas imaginadas e pensadas num formato cinematográfico, onde cada parágrafo é pensado tanto para funcionar sozinho (como um micro conto) ou como um parágrafo de um conto maior (ou um micro romance) se relacionando com os outros parágrafos mas sem uma continuidade explícita”. E seguindo a ideia da convocação à leitura interativa, “a cada parágrafo temos um espaço, um “buraco” a ser preenchido pela imaginação do leitor, como se cada parágrafo fosse parte de um quebra-cabeças – que ainda que (aparentemente) faltem peças, ainda assim a imagem completa pode ser vislumbrada”.
Enzo Potel
Enzo Potel foi lido por Diego Elias, assistente da Biblioteca do Sesc Balneário Camboriú. E os poemas do livro “Conto de Facas”, lançado em 2010, também se mostram como cenas, registros de imagens, instantâneos. “Uma das coisas que me chamam a atenção nesse “Conto de Facas” é a própria ideia do poema como um lugar de registro: o registro de um espaço, como a boate A Lôca, do poema homônimo; o registro da solidão visto em “A Falta Mágica”; de uma ação, quase como um fotograma, como no poema dos grilos do Missouri; ou o próprio registro da realidade mágica, está presente no poema “Estrela”, que abre o episódio”, aponta Diego.
Lembrando que o projeto "Página Sonora", em suas múltiplas camadas, inicia com a pesquisa de autores/autoras e a seleção de trechos para leitura. A seleção não é aleatória. Para o leitor do episódio de Enzo Potel, marcar esse lugar de registro era essencial. “Foi com isso em mente que fiz essa breve seleção, e, claro, reiterando os versos finais de um outro poema: “(...) o / objetivo da minha poesia não é ofender, / e sim registrar. Nem que seja registrar / uma ofensa”.
Bianca Furtado
E falando em registros de realidades mágicas, por uma outra vertente, outra proposta e outra linguagem, Bianca Furtado é apresentada no "Página Sonora" na leitura de trechos do romance “Brumas da Ilha”, lançado em 2017 pela Arte Editora. “Sempre gosto de trazer a palavra emergir quando falo do meu livro “Brumas da Ilha”. Essa história emergiu das profundezas das águas escuras. Ela foi escrita em 1º pessoa, por isso trouxe uma voz doída, ocultada, quase sussurrante.
São escritos femininos que contam sobre o seu legado; mulheres que foram intituladas de bruxas pela comunidade católica em meados de 1746 no Arquipélago dos Açores e depois em Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis”, conta-nos Bianca. A autora fala desse relato como também um chamamento, em grande parte direcionado à mulher leitora, para que ela participe com um novo olhar para uma velha história feminina. Bianca acredita que “Brumas da Ilha” pode causar certo desassossego e desconforto, mas também libertador, na medida em que revela histórias escondidas de “almas” femininas silenciadas.
Beatriz RGB
Beatriz RGB surge com uma poesia que rompe com silêncios, promove vozes e reconstrói histórias a partir de uma nova linguagem. Tudo é sobressalto, sensualidade e vida nos poemas de “querides monstres”. “a arte, aqui com a escrita, sempre foi um empenho de trazer à voz aquilo que a Maria-Mercè Marçal chama de língua abolida. aquilo que não estava dado, que vem à tona estilhaçando o dado, e também como tentativa de criar caminhos viáveis entre isso que estava dado. a escrita sempre foi vital, e a tradução também, como esse lugar de conversa com quem ressoava, alimento entre línguas.
queer, ou queer~cu-ir, como gosto de torcer na escuta de muites que fazem suas próprias dobras, abre rotas de fuga, pois, cada vez mais, vemos como a inclusão na ordem das coisas como ela está é a morte”, registra Beatriz. São três os poemas selecionados para a leitura no "Página Sonora". E sobre o livro, elu continua: “acredito que, em querides monstres, escrevi pela primeira vez sobre como sinto o prazer e a dor de tentar viver e imaginar esses trajetos, essas encruzas, que me chegaram através de outres. essus com quem compartilho línguas, mas sempre em tradução. monstres vivendo seu próprio desejo, seus corpos, sua espiritualidade, entre mar, trilha e terreiro, músicas e poemas outres, apesar de tanta violência que nos atravessa. estarmos vives e construir juntes, de outras maneiras, em outras direções, com a ajuda das ferramentas imaginativas da escrita e/m tradução”. A coragem e a voragem de uma outra língua são marcas indeléveis do trabalho de Beatriz RGB.
*Obs.: O trecho do livro de Beatriz RGB é uma escrita não binária e não hierárquica, além da não utilização de maiúsculas.
Marco Vasques
Marco Vasques é apresentado no "Página Sonora" com um conto do livro “Harmonias do inferno”, lançado em 2010 pela Editora Letradágua. Aqui, o autor nos fala sobre arte, literatura e novas mídias fazendo referência a Umberto Eco e sua afirmativa de que o livro jamais morrerá. “As novas mídias impuseram novas estratégias. Surgem revistas e editoras online quase todos os dias. O excesso também não é uma prerrogativa das novas mídias. Se se publica muita coisa sem qualidade na internet, por exemplo, não podemos deixar de considerar que se publica, de forma tradicional, uma outra quantidade de literatura dócil.
A questão do consumo de literatura e de arte no Brasil, de um modo geral, sempre foi um problema”, enfatiza Marco. Para o autor, a única maneira de solucionar esse problema é com educação, no convívio do estudante desde a primeira infância com a literatura, com o teatro, com a dança, uma convivência que consequentemente será sua condição e universo quando adulto. “Vivemos um momento, no país, em que a arte e a cultura estão sob ataque. Então, para ser sincero, se uma nação não tem interesse em sua arte, o que poderá um artista diante disso, já que sua função primeira é fazer arte. Vivemos num país em que milhares de pessoas são destituídas do básico, por isso, arte e cultura soam, para eles e para a sociedade, como um luxo dos eleitos. É triste, mas é isso que ocorre. As novas mídias podem ajudar?” Deixemos a pergunta do Marco reverberar.
No entanto, finalizamos com a resposta que ele próprio proclama na criação de nichos e circuitos, na busca de afinidades estéticas e na expansão da leitura tendo em mente sua ligação direta com a educação. Questionado sobre seu processo criativo, o autor expressa-se com imagens do cotidiano. “E, claro, da experiência desse cotidiano, da vivência desse estar afetado e afetando o mundo. Não tenho muita mitificação sobre o trabalho do artista. Sou um trabalhador na mesma dimensão que um pedreiro é um trabalhador. Com a diferença que o pedreiro junta tijolos e faz casas. A mim coube juntar palavras e construir textos”.
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Saiba Mais:
Como surgiu o "Página Sonora"
Texto de Luciana Tiscoski, técnica de Cultura do Sesc Estreito (Florianópolis) e Palhoça.
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