Processos de escrita na fala dos autores, no Podcast “Página Sonora”


26/03/2021 - Atualizado em 08/04/2021 - 516 visualizações

O "Página Sonora", podcast da literatura feita em Santa Catarina, através da Rede de Bibliotecas do Sesc-SC, é um projeto dedicado inteiramente a autores que aqui tecem ou teceram suas histórias, seus relatos, pensamentos, pesquisas, diálogos e trocas, nos mais variados gêneros, estilos e linguagens.

As cinco novas leituras do “Página Sonora” já estão disponíveis com trechos de livros de Ieda Magri, Fábio Brüggemann, Caléu Nilson Moraes, Viegas Fernandes da Costa e Anair Weirich. Nesta matéria, que se propõe a abrir um espaço de fala para os autores e as autoras contemplados nos podcasts, surgem depoimentos diversos sobre processos de criação e as mais singulares relações com a literatura.

Poetas, se autênticos, devem repetir “não sei”.

Ieda Magri

Começamos com Ieda Magri, que por 10 anos trabalhou no Sesc com projetos memoráveis do percurso de formação de leitores da rede de bibliotecas, como o Café Literário e o NELA, um núcleo de formação de professores. Seu livro Tinha uma coisa aqui tem um trecho lido pela assistente de biblioteca de Jaraguá do Sul, Aline dos Santos. E aqui, temos um pouco do pensamento da autora sobre escrita, publicação e trabalho.

Ieda inicia citando uma declaração de Wislawa Szymborska, quando recebeu o Nobel, em 1996, aos 73 anos: “a escrita é um contínuo não saber”. Para a poeta polonesa, a inspiração – ou seja lá o que isso for – nasce de um contínuo “não sei”. Para nossa escritora, Ieda Magri, nascida em Águas Frias, pequena cidade de Santa Catarina, essa seria a consciência principal, para impulsionar e também para pensar a escrita, o livro, o trabalho. E segue citando Szymborska, “Todo o conhecimento que não leva a perguntas novas se extingue depressa: não consegue manter a temperatura necessária para a conservação da vida [...] Poetas, se autênticos, devem repetir “não sei””.

Com suas próprias palavras, Ieda complementa a reflexão como num diálogo entre essas duas grandes mulheres. “Penso que é assim mesmo que funciona: o escritor escreve para tentar organizar esse caos que é o não sei sobre o mundo e sobre ele mesmo no mundo e sobre tudo o que lê e pensa — porque a literatura é também experiência de mundo e experiência dos livros — e nós, leitores, ao ler também tentamos lidar com esse não sei, seja o nosso não sei, seja tentando descobrir o que afinal o autor ou o narrador desse livro que está nas nossas mãos não sabia antes de escrevê-lo e, afinal, como o livro responde a essa afirmação de não saber. O que se descobre e se passa a saber com o livro e que novo ‘não saber’ ele lança como resposta e exigência de novos passos.”

Sobre o livro do qual retiramos um trecho e emprestamos corpo e voz no “Página Sonora”, Ieda revela partir de uma tentativa de tocar a experiência com a literatura, sendo este o seu “não saber”. “Toquei naquilo que poderia doer numa pessoa e que faz ela ser mais profundamente quem é. A perda do pai, o aborto, um filho doente, a pobreza.”, declara por fim. O trecho de 'Tinha uma coisa aqui' é uma pequena mostra da escrita sensível e potente de Ieda Magri, autora também de Olhos de bicho e Ninguém.

Fábio Brüggemann

Nesta temporada, contamos também com Fábio Brüggemann e seu conto “O dendrófilo”, do livro Fabulário dos ilustres desconhecidos. O autor discorre sobre sua relação com a literatura num mesmo viés de liberdade de criação, sem normas preestabelecidas ou receitas de verdades absolutas. “Não penso literatura como declaração de princípios sobre qualquer questão. Sou do time de Mallarmé, porque não se faz poesia com ideias, mas com palavras. O que me atrai nessa arte (seja como leitor, seja como autor) é o prazer do significante, porque o do significado (não menos importante), procuro em outros discursos, notadamente na filosofia e seus ensaios, teses e às vezes as proposições e desvios de ser estar no mundo.”

Fábio supõe que seu livro 'Fabulário dos ilustres desconhecidos' seja a tentativa “menos literária” que já produziu. “Pelo menos no que se refere à linguagem, porque fiz um esforço para não me deixar levar pela música de outros livros, a novela A lebre dói como faca de ouvido, ou a reunião dos contos esparsos de Riomadrenses”, declara o autor.

Ainda falando do livro, que prefere chamar de coletânea de escrituras, Fábio comenta que é sua publicação mais lida, premiada e com segunda edição já esgotada. “A trapaça da linguagem neste volume está talvez nesta tentativa, a de não trapacear, porque eu queria contar histórias de um modo que se aproximasse mais da tradição oral. De qualquer modo, (o livro) ainda recebeu críticas por que alguns leitores e teóricos não conseguiram enquadrá-lo na caixinha “contos”.” A coletânea é uma experiência que de fato remete à sensação de ouvir contar histórias de viajantes de terras longínquas e imaginárias, por onde andaram Kafka, Gauguin, Nietzsche e pessoas bem comuns da classe dos vencidos, que se encontram em labirínticas passagens do tempo, e repetem as perguntas essenciais da humanidade. No conto lido, há uma pista, mas a experiência vale, com certeza, a leitura de todo o livro.

Caléu Nilson Moraes

Caléu Nilson Moraes é mais um autor que nos revela aqui a conversa infinita da literatura contemporânea. Se esses autores estivessem reunidos em uma mesma sala, o debate seria imperdível, porque as falas parecem ecoar um encadeamento perfeito de ideias, que se completam e se enriquecem mutuamente. E de novo, o não saber: “Assim como nos meus livros tento aprender alguma coisa e fazer ecoar o meu não sei; e assim como eles são estudos de autores e questões de minhas pesquisas acadêmicas, o que procuro trabalhar com os meus alunos é como ler como um escritor. Acho que essa é a maneira como melhor me relaciono também com o ensino da literatura na universidade”, comenta Caléu.

Neste universo da sala de aula, o “ensinar literatura” ou “trabalhar a competência literária” é, para o autor, “ler a literatura como arte e a maneira como ela elabora suas questões sobre o mundo”. E continua explicando que seu caminho para chegar a essas reflexões é tentar descobrir como e o que escrevem os escritores, o que fascina na leitura de seus textos e como essas leituras respondem à pergunta sobre o não saber.

Instigado a falar um pouco sobre seu livro 'Guia literário para machos', do qual retiramos um trecho para esta edição do "Página Sonora", Caléu declara que gosta da ideia de fomentar discussões com o tema abordado no livro. “O machismo (como todo ismo) é uma estupidez tremenda. Tenho tanta preguiça de pensar/discutir a respeito que prefiro que os outros o façam por mim. E há muita gente, como o pessoal do podcast, capaz de fazê-lo brilhantemente. A literatura, para mim, é riso. Quando um autor é muito sério, sempre desconfio. Então, meu texto, que não é "contra" nada (mas "contra" tudo ao mesmo tempo), não pode ser nada além duma longa piada”.

E de novo, a literatura aparece como liberdade. Conforme Caléu, se não fosse para libertar-se de convicções e regras de conduta, não se arriscaria a escrever. “Divirto-me escrevendo. Gosto que se divirtam lendo. E, se meu texto, que é uma piada (e, por isso mesmo, tem de ser levado a sério), faz com que as pessoas discutam qualquer coisa, da tolice do machismo à estrutura do bigode de Heidegger, já estou ganhando”. Nossa dica é que se divirtam ouvindo o podcast e, principalmente com a leitura do livro, mas não deixem de levar a piada a sério.

Viegas Fernandes da Costa

Viegas Fernandes da Costa nos dá seu relato sobre o poder transgressor da literatura. Seguimos em debate sobre o fazer literário contemporâneo e sua rede infindável de referências. Viegas traz à tona o pintor gaúcho Iberê Camargo. “Um dia perguntaram a Iberê Camargo por que pintava, e ele respondeu que o fazia porque a vida doía”, e o autor explica que sua primeira razão para escrever é a consciência e a experiência da vida enquanto dor “uma dor tamanha que, não fosse a palavra, transbordaria sobre qualquer possibilidade de algo mais”. E finaliza a sentença evocando Freud: “porque existe a palavra, há também esta possibilidade de sublimação da existência. Se no princípio somos pulsão, a literatura – como toda arte – nos faz impulsão”.

Pulsão, impulsão, mas também compromisso. Viegas lembra que desde muito jovem compreendeu o poder transgressor e libertador da literatura. E nos conta aqui de seu primeiro encontro com a leitura. “A primeira biblioteca que conheci estava encarcerada em um guarda-roupa cuja chave eu furtava nos domingos em que minha avó, a zeladora dos livros interditos, ausentava-se para os cultos sagrados. Foram estes livros proibidos minha primeira aventura literária. Acho que por isso tenho a palavra como arma e a literatura como trincheira”, rememora.

Hoje, o autor de 'Pequeno Álbum', livro do qual são lidos 2 contos nesta edição do Página Sonora, segue produzindo seus fragmentos e desacreditado das propostas totalitárias. “Fragmentos que estão nas fronteiras dos gêneros, porque a literatura fora da forma menos conforma. É nesta literatura que acredito: na literatura deformada e inconformada, cinética, em diálogo com o tempo presente, produzida com as gentes e para as gentes. Uma literatura dedicada às notas de rodapé, produzida nas margens, que é onde estão as pessoas de verdade”. E a conversa parece seguir indefinidamente em linhas convergentes.

Anair Weirich

Anair Weirich traz a este espaço sua trajetória com o livro 'Reavivando Emoções'. Para a autora, a publicação era o começo de um longo caminho a trilhar para colocar sua escrita no mundo. E uma certeza: “não se faz um livro para ficar no escuro dos armários e das gavetas!”. Anair demonstra todo seu apego pelo objeto livro, fala sobre sentir seu cheiro, fazer uma orelha na página quando interrompe a leitura, uma relação que se estabelece a partir de um contato íntimo com o livro físico. E brinca comparando com a leitura numa tela de celular ou computador: “Livro não pega vírus, não acaba a bateria e nem lhe foge o texto... e se tem o bicho traça a gente traça o bicho!”

Rememorando sua primeira publicação, Anair conta de sua peregrinação. “Com os 500 exemplares que ainda me restavam do primeiro livro, sob orientação do meu marido, - gratidão a ele, sempre presente em todos os instantes da minha vida - literalmente botei o pé na estrada naquele 23 de janeiro de 1996! A imagem da minha filha Deny, na época com 7 aninhos, chorando no box de embarque de ônibus ao me ver partir, me perseguia onde quer que eu andasse com meus livros. Aquilo era uma chaga aberta, mas eu precisava prosseguir! Essa foi a parte mais difícil. Ficava até um mês fora de casa em palestras escolares, feiras de livros e visitas à empresas.”

A jornada continuou muito além de sua cidade natal, Chapecó, tendo sido recebida com seu livro em Palma de Mallorca, cidade catalã. Anair conta que as pessoas não liam português, mas compravam os livros e pediam para sua filha, que mora na Espanha, para traduzir. “Ganhei até apelido de Tia Poesia e Peregrina da poesia”, declara orgulhosa.

Mas é de sua cidade que traz a experiência da dor. “Então o avião da Chape caiu e o mundo ruiu aos nossos pés. Eu olhava pra minha cidade e via lágrimas brotarem no concreto dos prédios... até eles choravam!”, reflete a autora. Ela conclui falando que, como este, outros percalços surgiram no seu caminho, mas que a perseverança e sua crença na literatura venceram as agruras da vida. “O óleo perfumado que uso em meus livros e toda interatividade que eles propõem fazem muita diferença, minha poesia é para mim um pote de tesouro infindável, um manancial de água que me mantém viva, embora lá atrás mais que um tivesse me dito que viver de poesia era utopia. Eu vivo de poesia.”


Confira fragmentos da escrita desses autores, compartilhe e acompanhe as leituras, os relatos e as vozes no “Página Sonora”, um projeto de valorização e circulação da literatura contemporânea catarinense.

Acesse os links do podcast nas principais plataformas:


Como surgiu o "Página Sonora"


 A iniciativa "Página Sonora" vem sendo construída desde novembro de 2019, quando os assistentes de biblioteca e alguns técnicos de cultura do Sesc Santa Catarina realizaram um encontro com o objetivo de debater e reinventar caminhos para a efetiva formação de leitores críticos e contumazes, com conhecimento e reconhecimento do que é a experiência da leitura. E para que essa transformação de fato aconteça, há longos caminhos a serem percorridos, começando por capacitar a equipe de assistentes de biblioteca para mediação do livro, da leitura e da literatura.

Surgiu então a necessidade de buscar compreender a maior carência e urgência dentro de um universo tão vasto. E dentre as inúmeras sugestões, possibilidades, alusões e argumentações, uma tarefa ficou clara e unânime: ler, reler, conhecer, discutir e então, dar acesso aos leitores ou ainda não leitores, à escrita produzida em Santa Catarina. Os projetos e eventos planejados para 2020 com essa finalidade e tantas outras demandas, desde revigorar a literatura voltada para o público infantil até tornar a biblioteca um espaço cada vez mais de acolhimento, fruição, informação e diversão, foram adiados com a pandemia. Mas aos poucos, com o afeto e a persistência necessários a quem trabalha com cultura em nosso país, os meios foram sendo criados e uma parte das muitas tarefas daquele encontro se concretiza no "Página Sonora".

Texto de Luciana Tiscoski, técnica de Cultura do Sesc Estreito (Florianópolis) e Palhoça.



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