Literatura do presente em destaque no podcast "Página Sonora" desta semana


22/04/2021 - Atualizado em 23/04/2021 - 556 visualizações

O "Página Sonora", podcast da literatura feita em Santa Catarina, através da Rede de Bibliotecas do Sesc-SC, é um projeto dedicado inteiramente a autores que aqui tecem ou teceram suas histórias, seus relatos, pensamentos, pesquisas, diálogos e trocas, nos mais variados gêneros, estilos e linguagens.

A décima primeira temporada já está disponível e apresenta uma pequena degustação da poesia de Salim Miguel, Eglê Malheiros, Gustavo Matte, Nilson César Fraga e Walnélia Corrêa.

No livro "Literatura do presente: história e anacronismo dos textos", Susana Scramim, professora de Literatura Contemporânea da UFSC, abre os ensaios da publicação lançando a pergunta, “O que é o presente?”. Em resposta, para discutir sobre o tempo, desenvolve seu texto a partir de uma ideia de Giorgio Agambem, mais que uma ideia, um alerta: “[...] uma experiência com o tempo acompanha cada concepção de história [...] e numa concepção de história reside uma experiência com o tempo que inclusive a condiciona.” Essa reflexão nos leva então a perceber que para conhecermos ou construirmos uma cultura, precisamos necessariamente estabelecer novas relações com o tempo que nos levarão a novas concepções ou novos olhares sobre a história.

Essa introdução é pertinente na medida em que intentamos mapear ou registrar uma literatura do presente em Santa Catarina, uma literatura em constante transformação, que se constrói no presente, com toda carga de silenciamento, frustração, informações e contradições das tecnologias globalizantes, mas também atravessada de tempos históricos e registros ancestrais das mais diversas etnias e nacionalidades. Falamos a partir de um estado jovem, com camadas ainda desconhecidas de suas culturas, lutas interrompidas, línguas enterradas, expressões artísticas menosprezadas ou esquecidas - desde a indígena - que aqui estavam antes dos europeus.

Salim Miguel

E falando de terras longínquas, Salim Miguel, autor libanês que viveu em Florianópolis, entre Biguaçu, a UFSC, o Grupo Sul e a praia de Cachoeira de Bom Jesus, apresentamos um fragmento de seu romance "Mare Nostrum", de 2004, lido por Marilaine Hahn nesta temporada de número onze do "Página Sonora". Pescadores, rendeiras, o negro centenário Ti Adão, o eremita da praia caçador de corruptos (crustáceos) e Marcelo, Marcolina, Altimar, os manezinhos trazem a mitologia que cerca o mar da Grande Florianópolis, principalmente da Cachoeira do Bom Jesus, nessa narrativa polifônica que deveria figurar na lista de livros de todo apreciador da boa literatura.

O escritor e analista em literatura do Sesc Nacional Henrique Rodrigues contribui aqui com seu depoimento, corroborando nossa viva recomendação à leitura de Mare Nostrum: “Tive a grande sorte de esbarrar com o grande Salim Miguel em evento promovido pelo Sesc Santa Catarina, lá pelo ano de 2005. O autor começava a lançar sua obra pela editora Record, chegando assim a mais leitores. E tive também a oportunidade de resenhar o seu romance "Mare Nostrum" para o Jornal do Brasil. É um livraço, tendo o mar como protagonista, e “desmontável”, brincando com as possibilidades formais de construção de um romance fragmentado, uma prosa instigante e sofisticada.”

Salim Miguel foi contista, romancista, jornalista e roteirista. Chegou ao Brasil aos três anos, em 1927, com sua família, em Biguaçu, cidade cenário em muitos de seus livros. Nas décadas de 1940 e 1950, já em Florianópolis, integrou o Grupo Sul, responsável por difundir o ideário modernista no estado e editar a revista Sul, entre 1949 e 1957. Com sua esposa, a também escritora Eglê Malheiros, escreveu o roteiro do primeiro longa-metragem catarinense, "O Preço da Ilusão", de 1957. O autor faleceu em Brasília, em 2016, e deixou-nos, além de "Mare Nostrum", os livros"Velhice e outros conto", "O castelo de Frankenstein", "Primeiro de Abril: Narrativas de cadeia", "Nur na escuridão", e "Nós entre outros".


Eglê Malheiros

Eglê Malheiros é tradutora, poeta, crítica literária e professora de história, par na vida e na literatura de Salim Miguel. A escritora nascida em Tubarão, lida também neste "Página Sonora", é figura marcante e memorável da trajetória cultural de Florianópolis. Quebrou paradigmas como uma das fundadoras do Círculo de Arte Moderna Grupo Sul ao incluir nomes de mulheres na vida artística e na crítica literária catarinense. Esse grupo revolucionou a literatura, o cinema, o teatro, a música e as artes plásticas no estado, especialmente em Florianópolis. Seus poemas foram publicados no primeiro número da Revista SUL - da qual também foi editora - e depois, foram reunidos no livro "Manhã", de 1952.

Nesta edição do "Página Sonora", selecionamos quatro poemas do e-book "Manhã e Outros Poemas", uma edição comemorativa aos 90 anos da autora, organizado por Sônia Malheiros Miguel, filha do casal Eglê e Salim, e com projeto visual inspirado na capa original de "Manhã", criada por Carlos Scliar. “O livro é resultado de uma produção caseira realizada com muito afeto, que envolveu filha e filhos, noras, netos e netas”, podemos ler logo na apresentação do e-book.

Em entrevista concedida à Agecom, da UFSC, em 2018, ano de lançamento do e-book, Eglê declara sobre a publicação: “foi muito importante, pois eu jamais tinha feito um trabalho de recolha de tudo que tinha produzido. Essa publicação, como eu sinto, irá estabelecer um encontro de várias gerações, porque as leitoras e os leitores irão encontrar à sua disposição uma visão de mundo que é quase estranha para estes tempos”.

Gustavo Matte

Estes tempos nos trazem Gustavo Matte, filho de imigrantes italianos e alemães do Oeste de Santa Catarina que, desde sempre, incentivaram-no ao hábito da leitura. Segundo o escritor, presente neste "Página Sonora" com a leitura de um trecho de "Demo via, Let´s go!", a leitura era vista pelos pais como forma de conquista de habilidades intelectuais para, se tudo corresse conforme o planejado, ter a chance de se transformar num “doutor”, com “qualificação profissional”. Ou seja, transformar-se num adulto médico ou advogado, ter uma “carreira padrão”.

Mas a ideia de se tornar um “artista das letras” acabou prevalecendo nos planos de Gustavo. Ele nos conta ainda sobre os caminhos que percorreu para encontrar a sua literatura. “Como não sou de uma família que, ao longo das gerações, acumulou algum “capital cultural” (no sentido de cultura erudita mesmo), e como a cidade de Chapecó, onde cresci, também não proporcionava grande acesso a uma vida cultural agitada, precisei percorrer os caminhos praticamente sozinho. Com isso, quero dizer que não houve ninguém, na minha vida, ao menos até eu ingressar no curso de Letras, que me apontasse leituras, indicasse coisas boas, obras interessantes, e acabei lendo muita “subliteratura” e chafurdando a fundo no universo da cultura de massas em minha jornada de tentar encontrar um futuro na literatura”, relembra. Em suas próprias palavras, Gustavo diz que seu imaginário foi sendo formado por uma tensão constante entre o pop e o erudito, entre referências de universos heterogêneos, marca definitiva em seus textos. Sorte a nossa, contemporâneos dessa literatura multifacetada e em constante transformação.

Sobre suas leituras e seu processo criativo, o autor trabalha num processo de pastiches e “remixagens”, e tanto o pastiche quanto a remixagem são, antes de tudo, gestos de “ressignificação da leitura”, ou seja, reutilização de referências anteriores. “Meus textos costumam aparecer na forma de colagens de estilos que orbitam em várias esferas da cultura e, às vezes, são até cópias e colas de referências obtidas em outras obras (literárias, fílmicas, musicais etc...)”, explica.

Um pequeno fragmento desse processo, pode ser conferido no episódio "Demo Via Let’s go!" que, segundo Gustavo, é resultado dessa forma específica de relação com a escrita, “motivado pelo interesse em investigar (esteticamente, fique claro) alguns traços particulares da sensibilidade urbana do Oeste de SC, muito marcada pela estética trash, gore, kitsch e debochada”. O autor nomeia “subtropicalista” os traços culturais de Chapecó misturados às colagens do resto do Brasil, estilo e estética continuados dois anos mais tarde com a publicação de "Nuvem Colona", lançado pela Caiaponte Edições.

Nilson César Fraga

Nilson César Fraga, escritor catarinense que vive em Londrina, estuda a Guerra do Contestado desde o início de 1990. Nesta edição do "Página Sonora", surge "Adeodato: o homem que fugiu do inferno", romance histórico, cujo personagem foi inspirado no caboclo Adeodato Manoel Ramos, um líder social que lutava contra as desigualdades que eram impostas ao povo sertanejo no Contestado, conflito ocorrido por volta dos anos de 1912 e 1916. Desconstruindo imagens falsas e recontando a história, é possível acompanhar a saga da fuga de Adeodato e sua noite de vigília na floresta, entre delírios, reflexões e pesadelos.

Marina Gelowate, assistente de biblioteca do Sesc Mafra, fala de sua experiência de leitura. “Com uma rica descrição do cenário florestal nativo catarinense, Nilson Cesar Fraga nos faz sentir aflitos a cada movimento de fuga. Nessa perseguição implacável é nítido o estado de desespero, a barbárie, a fragilidade, a vulnerabilidade e a agoniante luta pela sobrevivência do ser”, relata.

Segundo a leitora, Nilson apresenta a crença no Monge São João Maria, que foi uma importante figura na Guerra do Contestado, através da aparição de uma Perdiz; Adeodato acredita que o pequeno animal comporta o grandioso espírito do Monge, um senso comum regional. Na madrugada, eles desenvolvem um diálogo furtivo quando Adeodato desabafa sobre os acontecimentos dos últimos dias e o motivo que o fez chegar onde está. “Emocionamo-nos a cada página com a lembrança de sua família e amigos, seus valores, preceitos e o questionamento se vale a pena continuar fugindo”, revela Marina, instigando-nos à leitura.

Walnélia Corrêa

Walnélia Corrêa traz o presente decantado em poesia ao "Página Sonora". No episódio, são lidos quatro poemas do livro "O saber é decantador", lançado em 2019, pela editora Terra Verde, com arte de capa do artista plástico Walmor Corrêa. Logo no primeiro poema do livro, o verso e o alerta: “Poeta não fala, escreve...”. Por isso mesmo, ela resiste em falar de si, prefere falar de suas leituras, com a sofisticada firmeza que é característica também de sua voz lírica. Inspirador é o momento presente. Aos poucos, a cada verso, compreendemos melhor essa decantação, num ritmo que poderia evocar Manoel de Barros, Adélia Prado, Alberto Caeiro, mas que também traz a filosofia, nas entrelinhas, de Aristóteles ou de Edith Stein, resquícios de seu saber decantador.

Respingam nos versos, memórias com cores, sem saudosismos, como se compondo novamente o presente, o instante, traço talvez adquirido nos anos com a prática de yoga e meditação. O olhar sobre as coisas é apreendido e logo libertado, sem excessos, o foco está no detalhe, no canto dos pássaros, no café com um amigo, na festividade simples de uma borboleta. “E a leitura nos permite fluidez através do olhar concentrado e da palavra disciplinada. Ler me permite alcançar o que o ser humano tenta explicar. Bons livros são como anjos”, conclui a poeta.

Confira fragmentos da escrita desses autores, compartilhe e acompanhe as leituras, os relatos e as vozes no “Página Sonora”, um projeto de valorização e circulação da literatura contemporânea catarinense.

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Saiba Mais:

Como surgiu o "Página Sonora"


A iniciativa "Página Sonora" vem sendo construída desde novembro de 2019, quando os assistentes de biblioteca e alguns técnicos de cultura do Sesc Santa Catarina realizaram um encontro com o objetivo de debater e reinventar caminhos para a efetiva formação de leitores críticos e contumazes, com conhecimento e reconhecimento do que é a experiência da leitura. E para que essa transformação de fato aconteça, há longos caminhos a serem percorridos, começando por capacitar a equipe de assistentes de biblioteca para mediação do livro, da leitura e da literatura.

Surgiu então a necessidade de buscar compreender a maior carência e urgência dentro de um universo tão vasto. E dentre as inúmeras sugestões, possibilidades, alusões e argumentações, uma tarefa ficou clara e unânime: ler, reler, conhecer, discutir e então, dar acesso aos leitores ou ainda não leitores, à escrita produzida em Santa Catarina. Os projetos e eventos planejados para 2020 com essa finalidade e tantas outras demandas, desde revigorar a literatura voltada para o público infantil até tornar a biblioteca um espaço cada vez mais de acolhimento, fruição, informação e diversão, foram adiados com a pandemia. Mas aos poucos, com o afeto e a persistência necessários a quem trabalha com cultura em nosso país, os meios foram sendo criados e uma parte das muitas tarefas daquele encontro se concretiza no "Página Sonora".

Texto de Luciana Tiscoski, técnica de Cultura do Sesc Estreito (Florianópolis) e Palhoça.

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