Página Sonora destaca "travessias possíveis do século XIX ao cyber"


21/05/2021 - Atualizado em 28/05/2021 - 469 visualizações

O "Página Sonora", podcast da literatura feita em Santa Catarina, através da Rede de Bibliotecas do Sesc-SC, é um projeto dedicado inteiramente a autores que aqui tecem ou teceram suas histórias, seus relatos, pensamentos, pesquisas, diálogos e trocas, nos mais variados gêneros, estilos e linguagens.

As cinco novas leituras do “Página Sonora” já estão disponíveis com trechos de livros de Delminda Silveira, Louise Salomé, Cátia Cernov, Idésio de Oliveira e Virgílio Várzea.

“Escritoras Brasileiras do Século XIX” é um compêndio de mil páginas que reúne escritoras, editoras e pesquisadoras em torno de uma missão: quebrar o ciclo de esquecimento e silêncio ao qual foram relegadas as histórias de mulheres que escreveram durante todo um século. Zahidé Muzart (1939-2015), professora doutora da UFSC, pesquisadora, editora e historiadora literária feminista, que sempre lutou pela visibilidade da literatura feita por mulheres, foi a organizadora da publicação. E foi com o mesmo propósito, de resgatar essa memória, que o "Página Sonora" selecionou dois poemas da escritora e professora, Delminda Silveira - nascida em 1854, em Nossa Senhora do Desterro - para leitura desta temporada.

Delminda Silveira

Delminda Silveira escreveu seu primeiro livro, Lises e martírios, em 1908, reunindo poemas, crônicas e pequenos contos. Em 1914, foi publicado o Cancioneiro, uma coleção de hinos e poemas para recitar, além de fábulas e diálogos. Foi assídua colaboradora de A Mensageira, revista que desempenhou importante papel na luta das mulheres brasileiras pela educação. O fato de ter colaborado intensamente com uma revista feminista revela que, apesar de certa ideologia conservadora apontada por alguns críticos, Delminda também refletiu sobre uma das questões mais prementes do século: a mulher e seus direitos. 

A pesquisadora Zahidé cita em seu livro um dos artigos de Delminda no qual a escritora critica a obsessão dos pais com o casamento das filhas. Segundo a escritora, a cultura, “amplificando os horizontes da inteligência, dará à mulher a luz suficiente para discernir e escolher o melhor caminho”.


Louise Salomé

Louise Salomé, escritora contemporânea de Balneário Camboriú, já bem distante no tempo de Delminda Silveira, discorre em seus textos sobre o erotismo, a morte, o desejo, a angústia e o gozo. Travessia de Salomé, publicado em 2020, pela Editora Estúdio Semprelo, é um livro que nasceu de uma tese acadêmica, mas que desde sempre transgrediu discursos, apresentando-se como poesia, diário de viagem, prosa ensaística, literatura erótica. 

Além do fragmento lido no "Página Sonora", convidamos à leitura de todo o livro, convidamos à travessia, uma experiência de um corpo solto em um barco balouçante, sem vela, de casco frágil, perdido no escuro de uma noite sem lanterna na proa, numa rota sujeita a ventos traiçoeiros e libidinosos, a Travessia de Salomé.

“Na minha criação artística busco a poesia expandida, que vai da escrita até a voz, da modelo vivo até a fotografia, da performance ao audiovisual, levando a palavra aos seus limites nas artes visuais onde a pincelada é conduzida pela potência de um movimento e o sentido se perde na mancha, no rabisco. Encontro uma unidade em todas essas mídias na pesquisa sobre o que é escrever o erotismo. Desenvolvendo assim livros escritos e poesias faladas que encontram o pincel e nanquim na tela”, instiga Louise.


Cátia Cernov

Cátia Cernov vem também rompendo discursos lineares e transgredindo a linguagem, com Sapiens, um livro entre a ficção científica e a filosofia. Segundo a autora, “a narrativa aborda o colapso das técnicas, instituições e paradigmas de pensamento, e busca alcançar outras possibilidades de mundo diante de uma grande catástrofe”. As motivações da escritora se amparam nos enfrentamentos filosóficos dos nossos tempos, e não apenas em uma aventura literária. 

E alerta que é necessário “abrir visão para a forma como vemos o funcionamento do mundo e os impactos que causamos. De como nos comportamos diante de outras espécies com as quais dividimos a existência nesse planeta. A questão do poder sobre o outro, o domínio e os colapsos civilizatórios do presente”, sentencia Cátia.

Incorporando muitos personagens nos saraus pela ilha do Desterro, Cátia irrompia em palcos nos bares e eventos literários, em tempos anteriores à pandemia, com múltiplas vozes, falando poemas e roubando a cena. Em sua poesia, a presença marcante da filosofia e da ficção científica. “Eu me propus a buscar uma espécie de fusão nuclear entre a poiesis e o cyberpunk, esta área bem peculiar da ficção científica que busca abordar a filosofia das técnicas nos enredos. Com toda essa queda humana e a ascensão do Algoritmo, eu não poderia deixar de resgatar o que há de humano, de afeto e de inteligência, tanto diante da técnica como sobre nossa coexistência com outras espécies nesse planeta, e inclusive sondar o próprio planeta como um ser vivo, possuidor de corpo, coração e mente”, finaliza. Um pouco dessa aventura poética e filosófica, encontra-se na leitura de Juliana Ben de Cátia Cernov, no "Página Sonora".


Idésio de Oliveira

Diretamente do ciberespaço para o Morro da Fumaça, com passagens de vida e escritas moldadas pelo pôr do sol do paralelo 30 em Porto Alegre, o poeta Idésio de Oliveira traz ao "Página Sonora" um poema sobre as olarias, as memórias e o tempo. Para Idésio, que viveu muitos anos trabalhando na capital gaúcha como enfermeiro de UTI, a poesia é o verbo criador, possibilidade curativa. “Num velho mundo a arder recheado de ‘dolorimentos’, esse verbum criador passeia entre as águas do cotidiano, freme em meio ao cais afetivo ou naufrágio de cada um, nomeia, ressignifica e dá forma e sentido às múltiplas nuances da alma humana. 

O estágio vibracional festivo promovido por um bom texto, revolta nossas adormecidas águas e, como bússola em meio às tempestades, pode sinalizar os caminhos que nos dão notícias de nós mesmos, espelhados relatos das vivências de alma do outro”, declara, ou declama, o autor de Versos para instrumentos de cordas. O poeta revela que aos nove anos, deparou pela primeira vez com a poesia, na interpretação de uma professora em sala de aula. Desde lá, seu olhar sobre as coisas e sua escuta das palavras transmutou, tudo parecia convergir para a literatura e a poesia. Quanto a suas referências de leitura, além das histórias sempre relidas de São Francisco de Assis, estão na estante, em lugar de honra, Eça de Queirós, Adélia Prado e Érico Veríssimo. E conta-nos, finalizando: “Hoje, pra mim, forjar versos é contribuir na construção da obra inacabada que sempre seremos”.

Virgílio Várzea

Outro leitor de Eça de Queirós, Virgílio Várzea leva-nos de volta ao século dezenove e ao resgate de escritas esquecidas no tempo. Nascido na freguesia de São Francisco de Paula de Canasvieiras, em 1863, passou a viver na Ilha de Santa Catarina, trabalhando em serviços burocráticos e estudando jornalismo e literatura. Liderou a "Guerrilha Literária Catarinense" contra o conservadorismo romântico, no intuito de implantar em sua terra a “ideia nova”, renovação estética do Realismo-Naturalismo. 

Sua carreira política é extensa, mas o que nos interessa rememorar são seus escritos ambientados no cotidiano florianopolitano da época, além de passagens históricas nas quais aborda desde as Cruzadas até o Rio Ganges. E foi amigo de Cruz e Sousa, tendo escrito em parceria com o poeta, Tropos e Fantasias, publicado originalmente em 1885. Com Cruz e Sousa também compartilhou a “guerrilha” pelo materialismo, o abolicionismo e a ciência, palavras caras ao Naturalismo da época, difundidas como ideias revolucionárias em jornais como “A Tribuna Popular”, “O Colombo” e o periódico satírico “O moleque”.

Nesta edição do "Página Sonora", apresentamos um trecho do livro Os argonautas, no qual um Virgílio clássico faz sua releitura da saga mitológica grega dos argonauta e Jasão em busca do Velocino de Ouro. Alguns críticos se referiam a sua obra como “saga marinhista”, devido a experiências vividas pelo escritor a bordo de embarcações de várias nacionalidades e continentes, onde colheu histórias, paisagens e tramas narrativas que transferiu aos seus escritos. Lauro Junkes reuniu e organizou os Contos Completos de Virgílio Várzea em dois volumes, em 2003. Ouça e aprecie a leitura de um fragmento da escrita de Virgílio Várzea no "Página Sonora".

Em junho, voltaremos com novos autores, novas autoras, e muitas leituras!

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Saiba Mais:

Como surgiu o "Página Sonora"


A iniciativa "Página Sonora" vem sendo construída desde novembro de 2019, quando os assistentes de biblioteca e alguns técnicos de cultura do Sesc Santa Catarina realizaram um encontro com o objetivo de debater e reinventar caminhos para a efetiva formação de leitores críticos e contumazes, com conhecimento e reconhecimento do que é a experiência da leitura. E para que essa transformação de fato aconteça, há longos caminhos a serem percorridos, começando por capacitar a equipe de assistentes de biblioteca para mediação do livro, da leitura e da literatura.

Surgiu então a necessidade de buscar compreender a maior carência e urgência dentro de um universo tão vasto. E dentre as inúmeras sugestões, possibilidades, alusões e argumentações, uma tarefa ficou clara e unânime: ler, reler, conhecer, discutir e então, dar acesso aos leitores ou ainda não leitores, à escrita produzida em Santa Catarina. Os projetos e eventos planejados para 2020 com essa finalidade e tantas outras demandas, desde revigorar a literatura voltada para o público infantil até tornar a biblioteca um espaço cada vez mais de acolhimento, fruição, informação e diversão, foram adiados com a pandemia. Mas aos poucos, com o afeto e a persistência necessários a quem trabalha com cultura em nosso país, os meios foram sendo criados e uma parte das muitas tarefas daquele encontro se concretiza no "Página Sonora".

Texto de Luciana Tiscoski, técnica de Cultura do Sesc Estreito (Florianópolis) e Palhoça.

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