O "Página Sonora", podcast da literatura feita em Santa Catarina, através da Rede de Bibliotecas do Sesc-SC, é um projeto dedicado inteiramente a autores que aqui tecem ou teceram suas histórias, seus relatos, pensamentos, pesquisas, diálogos e trocas, nos mais variados gêneros, estilos e linguagens.
A quinta temporada já está disponível no Anchor, Spotify e demais plataformas, com uma pequena degustação da poesia de Juliana Ben, Cristiano Moreira, Osiris Duarte e Suzana Mafra, e da prosa singular de Manoel Carlos Karam.
Manoel Carlos Karam
Manoel Carlos Karam (1947 - 2007) foi um escritor, dramaturgo e jornalista nascido em Rio do Sul - SC. Viveu a maior parte de sua vida em Curitiba, no Paraná. Trabalhou no cinema, na Tv e no jornalismo impresso.
Com a dramaturgia, tem uma longa e reconhecida trajetória na criação e direção de peças teatrais. Nos anos 80, enveredou de vez pela literatura, tendo obtido em 1995, o Prêmio Cruz e Sousa de Literatura, da Fundação Catarinense de Cultura, com o romance “Cebola”, publicado pela Kafka Edições.
Trazido ao "Página Sonora" pela seleção e leitura da bibliotecária Marilaine Hahn, “Sujeito oculto” foi seu último romance publicado em vida. O livro ambienta, com a linguagem inventiva e direta tão característica do autor, o cotidiano de uma personagem de identidade fragmentada e enigmática, um matador.
Para o escritor, crítico literário e editor Carlos Henrique Schroeder, "Karam esteve à frente de toda uma geração e ele - sozinho - foi um movimento literário, um submarino que só agora está emergindo." Para quem ainda não conhece, vale ouvir o fragmento de Sujeito oculto e, com certeza, recomendamos ainda mais enfaticamente, a leitura de seus livros.
"Muitas vezes me pergunto por quê essa coisa de escrever livro, o que leva um cara a escrever livro. Me pergunto e eu não sabia porque. Mas um dia eu descobri: eu não sou um escritor, eu sou um leitor". (Manoel Carlos Karam)
Juliana Ben
Juliana Ben tem dois poemas de “Preia-mar” lidos neste episódio do Página Sonora. Por esse seu segundo livro de poesia, a autora, natural de Porto Alegre e moradora há 6 anos de Florianópolis, revela ter um carinho especial, consequência de uma "gestação" lenta e cuidadosa. "Eu queria publicar um livro que tivesse um sentido enquanto obra, onde houvesse diálogo entre os textos.
“Preia-mar” é um percurso, uma sequência de ondas que ora serenam, ora tormentam, ora apenas são; é uma espuma que fica quando o presente se esvai, "uma tocha assombrada de um passado sem cidades".
Ainda sobre a experiência da escrita do livro, Juliana fala de um movimento paradoxal, de cheia e também de esvaziamento, um ciclo, uma transformação constante e necessária, "uma troca de pele inevitável e desejável".
Questionada sobre o que espera como recepção de sua poesia, ela declara desconhecer se a leitura de “Preia-mar” provoca sensações ou pensamentos desta ordem, por se tratar de uma outra etapa da experiência: a publicação. Pondera, no entanto, que essa já é uma etapa que não a preocupa especialmente. Embora afirme a importância de ser lida e gostar muito de receber retornos de seus leitores, alega não buscar um objetivo ou alcançar projeção.
"Há algo de incontrolável na publicação de um texto, algo que foge a nossa vontade ou intenção. As interpretações são muitas, as possibilidades de deleite - ou de rechaço - são múltiplas, e acho isso bonito. É, inclusive, uma de minhas motivações para a escrita: a indefinição, a impossibilidade de saber o que será (d)o texto que escrevo", finaliza
Cristiano Moreira
O poeta, professor e tipógrafo Cristiano Moreira, nascido em Itajaí e criado em Navegantes, também agracia-nos com poesia. E comenta que a escolha do poema do livro “Rebojo”, intitulado "lâmina - espelho: espanto!", lido no "Página Sonora", foi acertada.
"Esse texto é um dos meus prediletos. Evoca muitas narrativas ouvidas nos trapiches e barcos, da ordem do misticismo presente em muitos dos homens que passam tempo em alto mar vivendo em um território distinto daquele onde nascemos", discorre. Sobre a imagem evocada no poema, que nos remete ao fértil mar do Farol de Santa Marta, o autor enfatiza que "os nomes dos peixes e as partes do barco contrastam com a carne cortada de peixes em dia santo."
O poema é também tecido de suas reminiscências dos costumes do povo caiçara. "Os pescadores costumavam guardar a Sexta-feira Santa e não trabalhavam em alto mar. O barco ficava ancorado. Há relatos de mestres que teimavam, como este do texto, e certa feita um deles arrastando a rede, sente um tranco muito forte que fez ambos os barcos (pois se tratava de uma parelha) travarem e não avançar. Ocorre que a sonda e a carta náutica não marcavam qualquer tipo de laje, ou outro "pegador" que pudesse segurar o barco de tal forma", explica Cristiano. E expressa ainda todo seu encantamento com o rico imaginário contido nas histórias desses pescadores, material para sua poesia: "A vida desses homens se assemelha aos sertanejos que encontramos nas páginas do Guimarães Rosa."
A estreia na poesia com “Rebojo” aconteceu em 2005. Cristiano Moreira é autor também de “O calafate míope” e “Dente de cachorro”, entre outros. “Imagens da Madeira”, publicado em 2019 pela Editora Papel do Mato, é seu livro de poesia mais recente. Além de trabalhos com edição e tradução, é sócio da Quinta da Gávea hospedaria e quintal criativo onde está sediado o Ponto de Cultura Biblioteca Rural e a Oficina Tipográfica Papel do Mato, em Rodeio/SC.
Osiris Duarte
Osiris Duarte traz mais poesia para os leitores e ouvintes do "Página Sonora", com dois poemas do livro “Jogo de espelhos”, publicado em 2020. O poeta faz aqui seu relato sobre escrever em tempos sombrios. Segundo Osiris, "escrever em tempos de morte é uma estratégia para burlar o próprio tempo". A referência à morte está inevitavelmente atrelada à tragédia dos dias de hoje, agravada pela doença e pela negligência. Para o autor, escrever é revolver vozes de um outro tempo, "ressoar os ecos nas tumbas vazias de nossos ancestrais". Em suma, "é a sina dos que narram a vida", resume.
Essa narrativa que atravessa os tempos, conforme Osiris, é o que possibilitará que daqui a cem anos sejam revividas as nossas histórias de angústias, medos, erros, amor e fúria. "Por isso não houve na minha vida nenhum momento tão relevante para se escrever como agora. A literatura não morre feito gente", acrescenta.
Sobre as novas tecnologias, meios pelos quais essas narrativas hoje circulam e acessam os leitores, Osiris demonstra certo desencanto, embora admita a visibilidade que, não fosse a internet, talvez não tivesse conquistado. "Talvez o sim que disse escrevendo livros e poesia seja produto desse tempo de escancarar máscaras, que de tão óbvias nos constrangem a sermos quem somos mesmo. Penso ser solo rico para literatura esse momento de ostentar os esqueletos do armário. Podia discorrer numa retórica jornalista, política, numa analise de conjuntura pormenorizada da historia da literatura somada à resistência da existência lúdica do artista. Mas seria só mais uma crítica. Prefiro minhas metáforas, imprecisões e ambiguidades", insiste o poeta. Se há um desafio no agora em que vivemos, Osiris responde com a palavra existência. E arremata: "Não permitir que sejamos mudos é o papel da literatura desde sempre e continua sendo"
Suzana Mafra
E para finalizar com poesia, o "Página Sonora" apresenta a leitura de um poema do livro “Poesia Reunida”, da poeta de Brusque, Suzana Mafra, que também escolhe falar aqui de sua relação com a escrita. Ela conta que sempre foi uma leitora que se deslumbrava com os universos possíveis dos livros. E foi justamente o ler e reler algumas autoras que entraram para a lista de suas afinidades eletivas, que a levaram a escrever.
Por tantas vezes se surpreender com o estado fantástico que lhe proporcionavam essas leituras, pensou em arriscar sua própria produção. "Hoje, percebo que o ato de escrever acaba me constituindo como pessoa, não tem como dissociar a Suzana que escreve da Suzana que vive", reflete.
Sobre ter um poema seu lido na voz de uma outra pessoa, num podcast do "Página Sonora", a autora rememora passagens da infância, quando o rádio estava muito presente na casa de sua família. Para ela, ouvir a sonoridade das palavras, ouvir diferentes vozes, também fez parte da formação de seu imaginário como escritora.
"E ouvir meu texto na voz de outro é sensacional", conclui. Suzana Mafra, também bibliotecária, enfatizou sua satisfação e alegria ao saber que o Página Sonora foi concebido e é produzido em todas as suas etapas por bibliotecários, assistentes de biblioteca ou técnicos de cultura que vivem o dia a dia das Bibliotecas e dos projetos de formação de leitores.
Nossa próxima série de cinco leituras do Página Sonora, contará com os nomes de André Timm, Marina Coelho, Elisa Tonon, Catarina Lins e Flávio José Cardozo. Não percam!
Texto de Luciana Tiscoski, técnica de Cultura do Sesc Estreito (Florianópolis) e Palhoça.
Como surgiu o "Página Sonora"
A iniciativa "Página Sonora" vem sendo construída desde novembro de 2019, quando os assistentes de biblioteca e alguns técnicos de cultura do Sesc Santa Catarina realizaram um encontro com o objetivo de debater e reinventar caminhos para a efetiva formação de leitores críticos e contumazes, com conhecimento e reconhecimento do que é a experiência da leitura. E para que essa transformação de fato aconteça, há longos caminhos a serem percorridos, começando por capacitar a equipe de assistentes de biblioteca para mediação do livro, da leitura e da literatura.
Surgiu então a necessidade de buscar compreender a maior carência e urgência dentro de um universo tão vasto. E dentre as inúmeras sugestões, possibilidades, alusões e argumentações, uma tarefa ficou clara e unânime: ler, reler, conhecer, discutir e então, dar acesso aos leitores ou ainda não leitores, à escrita produzida em Santa Catarina. Os projetos e eventos planejados para 2020 com essa finalidade e tantas outras demandas, desde revigorar a literatura voltada para o público infantil até tornar a biblioteca um espaço cada vez mais de acolhimento, fruição, informação e diversão, foram adiados com a pandemia. Mas aos poucos, com o afeto e a persistência necessários a quem trabalha com cultura em nosso país, os meios foram sendo criados e uma parte das muitas tarefas daquele encontro se concretiza no "Página Sonora".
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